A Âncora e o Fundo do Mar.
Queixa:
Evandro sente necessidade de reconhecer o seu trabalho, de ter o seu trabalho reconhecido.
Evandro gostaria de sentir-se pleno na execução do seu trabalho.
Evandro-âncora
Evandro era uma âncora de um enorme cargueiro petrolífero. Quando o navio desancorava, Evandro-âncora era recolhido pelas enormes correntes de ferro e passava toda a viagem recolhido ao casco do cargueiro.
Evandro-âncora observava de seu posto o fundo do mar: as baleias, os golfinhos, os tubarões. Observava também os corais e toda a fauna e flora marítimas. Observava que todos os animais passavam por ele com certo ar de serenidade, de plenitude, de tranqüilidade. Eram plenos no que faziam: os golfinhos se sentiam recompensados por estarem sempre nadando em grupos, as baleias se sentiam em harmonia plena, cantando seus cantos e amamentando seus filhotes; os tubarões, por sua vez, sentiam-se plenos em atacar lobos-do-mar e caçar pingüins; os corais se completavam entre si, fazendo viver e reviver fauna e flora marinhas entrelaçadas, sabendo-se assim todas as criaturas, competentes e reconhecidas. Todos executavam suas habilidades e pareciam ser valorizados por isso.
Foi então que Evandro-âncora percebeu que não fazia nada de pleno! Nada de importante! Só era usado mesmo quando o navio chegava ao porto. Era então arremessado ao fundo do mar, ao que se agarrava até parar e, parando assim, parava o navio – só isso. Evandro-âncora pensava: será que eles sabem que estou fazendo isto aqui embaixo? Alguém lá em cima sabe que sou feito de ferro especial fundido e que posso suportar grandes pressões? Alguém lá em cima sabe que para chegar aqui passei por fornos metalúrgicos gigantes, fui moldado com ligas metálicas de alta resistência e que, por isso posso segurar um petroleiro? Provavelmente não!
Evandro-âncora sentiu-se então, só. Apesar de cumprir bem o seu trabalho; ele estava no casco do navio, embaixo, e por isso, ninguém reconhecia seu trabalho. E se ninguém reconhecia seu trabalho, talvez fosse mesmo um trabalho não reconhecido, um trabalho sem valor.
Naquela manhã, Evandro-âncora fora içado tristemente. Enquanto a viagem prosseguia, pouco olhava para o fundo do mar, para os corais ou golfinhos. Não faria nenhuma diferença mesmo.
Longas horas se passaram e Evandro-âncora se embalava na sua tristeza recém-conquistada. Foi quando percebeu que um pequeno fio negro aparecera no fundo do cargueiro. Um fio, que aos poucos, fora engrossando e que, em poucos minutos, transformara-se numa grande mancha… de óleo! Certamente algo se rompera no casco do navio, provocando um vazamento gigante, – uma catástrofe estava para acontecer. Evandro –âncora começou a gritar:
– Parem o navio, alguém aí em cima, pare o navio!.
Tomou-se de susto: de repente fora arremessado ao fundo do mar seguido pela grande corrente de ferro que o prendia ao casco. Haviam soltado-o para parar o navio. Concordou que só com o navio parado, poderiam recolher a grande mancha de óleo. O que mais assustava Evandro-âncora era pensar que estavam em alto mar, e ele nunca havia sido usado nestas circunstâncias. Estava acostumado a ser usado somente perto dos portos onde o mar era mais raso e mais calmo. O que aconteceria quando atingisse o solo nestas profundidades? E com todo o óleo sua volta, procurava:
– Onde está o fundo do mar?
Enquanto era arremessado velozmente para o fundo, Evandro –âncora percebera que os peixes estavam todos desesperados tentando escapar do óleo. Golfinhos, baleias e tubarões nadavam desesperados para se salvar. Toda a fauna e flora, uma vez tranqüilas, estavam agora, em fuga, desesperadas. Foi aí que algo inesperado aconteceu, Evandro-âncora foi tomado por seu senso de responsabilidade, sabia que tudo dependia dele. Consultou-se, disse a si mesmo que era feito de um material muito especial, que em sua formação aprendera suportar situações muito adversas e que por isso, estava pronto. Ao pensar assim, Evandro-âncora se sentiu surpreendentemente calmo. E calmo alcançou o fundo do mar em velocidade jamais usada. Chocou-se violentamente com o solo, o impacto o arremessara de volta para cima, chocou-se mais uma, duas, várias vezes. Sempre que era chicoteado para cima, voltava para se agarrar com seus ganchos de ferro fundido especial ao fundo do mar. E quanto mais difícil parecia, mais Evandro-âncora se firmava e com mais força penetrava no solo com determinação. Foi quando chocou-se violentamente contra uma rocha maciça, e nela com todas as suas garras, ancorou-se definitivamente. O cargueiro então parou.
Foi assim que a mancha de óleo pôde então ser retirada pelas enormes redes da companhia petrolífera, e o mar estava, dentro das melhores possibilidades, mais uma vez limpo.
Todos os outros dias da vida de Evandro-âncora ele passou dentro de uma serenidade plena. Sabia que havia na sua formação, tudo o que ele precisava para desempenhar seu papel. Ele desfilava agora, junto ao casco, triunfante – e os peixes, os golfinhos, as baleias e os tubarões pareciam notar que Evandro-âncora agora não tinha mais dúvidas e, sereno com eles, pelo fundo do mar, navegava.