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 A Vôo Migratório da Andorinha Rafaela.

 A Vôo Migratório da Andorinha Rafaela.

Queixa:

Andorinha Rafaela:

Já era de manhã do primeiro dia de verão, quando a Andorinha Rafaela abriu seus olhos pela primeira vez. Seu Pai e sua Mãe soltaram um silvo agudo de felicidade quando os seus olhos se encontraram. Souberam que aquele momento era único e que os três juntos formariam uma família dali por diante. Outros três guinchos se fizeram ouvir e a Andorinha Rafaela percebeu que junto com ela, no seu ninho, havia mais três irmãozinhos, todos sem pena,branquelos e também, como ela, loucos de fome.

Papai e Mamãe revezavam-se na coleta de insetos de vários tamanhos para alimentar seus filhotes. Com vôos rasantes e suas asas bifurcadas podiam capturar insetos com muita facilidade, e um a um os colocavam dentro do bico de cada um de seus filhotes. Aquele era um momento muito especial. O contato da Andorinha Rafaela com o Papai e, também com a Mamãe, trazendo a comida, criou para ela um amor que se associava aos dois. Eram como uma extensão dela própria, extensão que depois incluía o ninho de barro e saliva, e ao canto dos milhares de casais que mais uma vez fizeram ninho sobre a represa do rio naquele verão.

De dentro do ninho se via todo o vôo do bando de andorinhas pelo ar. Era espetacular ver como um bando inteiro podia fazer manobras tão acrobáticas juntos! Não havia nenhum comando e mesmo assim quando o bando se virava para esquerda todos seguiam na mesma direção e quando virava rapidamente para a esquerda seguido de um mergulho vertical, assim também todos o faziam. Eram acrobacias muito lindas de se ver, e a Andorinha Rafaela olhava tudo com muita atenção para aprender, pois uma vontade enorme de voar já tomava contava do seu peito, e então ela batia fortemente as asas dentro do ninho para sentir que estavam cada vez mais fortes. (clique aqui).

Foi no 30º. dia que algo de maravilhoso aconteceu. A Andorinha Rafaela tinha batido muito as asas naquela manhã e com toda a força que conseguira. Já pela tarde continuava a bater as asas até que começasse a sentir seus pés flutuando, já saindo do ninho. Papai e Mamãe se entreolhavam surpresos e muito contentes: já seria a hora do primeiro vôo da Andorinha Rafaela? Muito agitados, Papai e Mamãe começaram a também bater asas e a grajear para a Andorinha Rafaela e ela, em resposta, batia ainda mais forte as suas asinhas, cada vez mais forte e mais forte, e olhando nos olhos de Papai e Mamãe, bateu as asas com toda a sua força e num esforço final voou! Foi uma alegria sem par! Está certo que primeiro ela despencou alguns metros toda estabalhoada, mas quando viu que já estava voando, lembrou de como observara o bando por todos estes dias, e voltara a bater as asas graciosamente, e então fez um vôo planado rasante espetacular! Papai e Mamãe a seguiam e a orientavam. Os três juntos foram a atração daquela tarde junto à represa por voarem tão graciosamente já na primeira vez como uma família.

Depois daquele dia o verão correu alegre. Todos os dias havia vôos com todo o grupo de andorinhas da represa: manobras inusitadas, vôos inesperados e… Novos amigos! Novos filhotes de outras famílias, que também nasceram e aprenderam a voar na mesma temporada. A Andorinha Rafaela agora pertencia a uma família que ia além de Papai e Mamãe e que incluía todo o bando e até alguns filhotes andorinhas-machos que olhavam diferente para ela, e ela sentia um batido no peito mais rápido sempre que eles olhavam. O que seria aquilo?

Com a aproximação do fim do verão, o bando de andorinhas do rio começou a se apressar, Papai e Mamãe explicaram para os filhotes que era hora de se mudarem e fazerem o primeiro vôo migratório para um outro lugar, que todos iriam adorar. Seria um vôo longo e todos deviam estar muito bem alimentados, e para isso, a caça aos insetos tinha aumentado e estavam todos ficando fortes e cada vez mais dispostos. (clique aqui). Alguns chegavam a comentar que a viagem iria tomar muitos dias e noites e que eles viajariam uma distância enorme. (clique aqui).

Quando o bando todo finalmente partiu foi uma agitação geral, um verdadeiro espetáculo. Pela primeira vez, todo o bando da represa do ri voaram ao mesmo tempo. Nenhuma andorinha ficara para trás. Eram centenas, milhares de andorinhas subindo cada vez mais alto em busca das correntes de ar que dariam a direção para a rota migratória. Durante o percurso, a Andorinha Rafaela estava muito agitada. Procurava sempre ficar perto de Papai e Mamãe e dos outros filhotes. Foi assim no primeira semana, na segunda e na terceira semana do vôo migratório. Até que o inesperado aconteceu. Quando estavam já sobre um grande mar azul a quilômetros de distância do solo, outro bando de andorinhas vindo do leste se juntou ao deles e logo em seguida um outro bando de andorinhas vindo do oeste também se juntou ao enorme grupo. Agora o bando estava enorme e com muitas andorinhas novas para conhecer, para voarem juntas e até aprender outras manobras com as novas companheiras! A Andorinha Rafaela estava muito feliz. Percebia que o que aprendera em família, tivera sido apenas o começo do seu aprendizado, e que agora continuava seu aprendizado sozinha, com suas próprias experiências. Estava independente para voar e seguir com as novas companheiras seus vôos próprios Muitos anos depois a Andorinha Rafaela sempre se lembrava deste momento em que se sentiu emancipada. Percebera então que sua família havia aumentado e que todas as novas experiências traziam amizades e momentos importantes.

Foi quando percebeu que já por alguns dias não via nem Papai nem Mamãe. Um sentimento estranho tomou conta dela. Ela, pela primeira vez, desde o abrir dos olhos no ninho, desde a primeira comida na boca, desde o primeiro vôo com Papai e Mamãe, desde que os novos bandos chegaram, desde tudo o que já havia sentido, pela primeira ela se sentia só. Um sentimento recíproco de abandono tomara conta dela: Será que Papai e Mamãe haviam deixado ela para trás, se esquecido dela? Ou será que ela tinha se perdido sozinha ao conhecer suas novas amizades? Se fosse assim, Papai e Mamãe deveriam estar muito preocupados!

Pelas semanas seguintes continuava procurando por eles, mas o bando agora estava muito grande e muito difícil de se fazer contato. E como todos estavam sempre voando, parar poderia significar perder o contato com a rota migratória do bando, perder o rumo ao destino tão esperado.

As semanas se passaram e quando o vôo migratório terminou, o bando chegou num lugar lindo descampado perto de umas montanhas altas cobertas de neve. Durante todos os meses que se seguiram a Andorinha Rafaela, não vira mais Papai e Mamãe. Talvez devessem ter ido para rumos diferentes, cada um dentro do seu próprio vôo migratório e à procura de novas experiências e necessidades (clique aqui). Ela mesmo, agora, vivia em outro mundo, diferente daquele onde nascera, com pessoas diferentes que também a amavam como sempre se sentira amada pelos pais! Até mesmo ela encontrara uma andorinha-macho muito legal, que gostava de passar o pôr-do-sol juntos, e que ficara com ela durante todo o outono, inverno e a primavera no descampado das montanhas altas cobertas de neve. Aquele antigo batido mais forte no peito que sentira quando filhote, começava a ter sentido e trazia novos horizontes para a Andorinha Rafaela.

Chegara então o verão no Pólo Sul! Era o tempo de se fazer novamente o vôo migratório para o lugar onde nascera: para a represa do rio! Era muito excitante pensar em voar de novo para lá agora com novos amigos e seu namorado. O vôo de volta também levou semanas. E era incrível perceber que ela sabia o caminho, podia se guiar sozinha. O caminho que outrora fora ensinado por Papai e Mamãe agora era dela, estava com ela para sempre.

Quando finalmente chegaram à represa do rio, a Andorinha Rafaela foi naturalmente para o seu ninho, aquele onde nascera. Foi quando encontrou, para sua grande surpresa, o ninho já ocupado por Mamãe e seu novo companheiro!! E logo acima, Papai também com sua nova companheira!! Ambos a reconheceram imediatamente. E foi então, com imensa alegria que todos puderam voar mais uma vez juntos, todos que se amavam e, por algum motivo ou outro durante suas jornadas tiveram que se separar momentaneamente, mas agora, como todos podiam sentir, o amor nunca os deixara. O amor tinha sobrevivido a todos os vôos migratórios, a todos os desvios, e até mesmo às necessidades individuais, e principalmente ao tempo. Ao olhar nos olhos de Papai e de Mamãe sentira que nunca havia estado só, que eles cada um na melhor de suas vontades, sempre pensaram nela e sempre carregavam no seu peito muita saudade e a esperança de se encontrar novamente. E por terem sempre deixado esta possibilidade no seu coração, agora finalmente se reencontravam. A Andorinha Rafaela aprendera o que era amor. E sua não era como outras histórias de amor de outras andorinhas Ao contrário, era uma história linda! (clique aqui).

E por muitos anos, muitos vôos migratórios, muitos verões, despedidas e reencontros, a Andorinha Rafaela aprendera a amar e a perdoar. Aprendera a dizer adeus deixando sempre o coração aberto para um novo reencontro. Aprendera que cada um tem seus próprios Vôos Migratórios, mas que estes vôos não significam abandono e, para quem se ama, os Vôos que levam são os mesmos que trazem de volta, as pessoas queridas.

Foi um verão maravilhoso aquele verão na beira da represa do rio!

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 A dança logarítmica da Abelha-Roberta.

Queixa:

Roberta diz:

– ‘um sintoma da contemporaneidade que muito me afeta é a dificuldade de priorizar minhas escolhas… todas parecem ter a mesma prioridade e eu tenho que dar conta de todas elas ao mesmo tempo… Obviamente o resultado não é satisfatório e uma certa angústia me acompanha nesses momentos…

Abelha-Roberta

 A primavera acabara de nascer quando toda a colméia, em revoada, partia em busca das inusitadas flores e perfumes da nova estação. Como em toda a primavera, uma nova turma de abelhas havia sido criada e instruída sobre as técnicas de buscas de novos jardins em busca de pólen e néctar. A Abelha-Rainha já havia transmitido através de seus feromônios, pelas antenas das abelhas mais velhas, que estava muito feliz com a chegada da estação das flores  e,  que esperava ansiosa,  pelas noticias da nova turma de abelhas, sobre  onde estariam localizados os jardins com maior quantidade de pólen e de néctar.

A Abelha-Roberta mal se continha de tanta felicidade!

Era a primeira vez que a Abelha-Roberta voaria com as outras operárias em busca de tudo aquilo que a colméia precisava: néctar, pólen e água. A estação anterior tinha sido muito severa com as floreiras e as roseiras, e todos os estoques da colméia estavam quase vazios! Por isso, preocupada, a Abelha-Rainha havia ordenado a criação de um grupo super bem treinado de novas abelhas operárias, e esperava que ao chegar da primavera, este grupo pudesse executar uma série de tarefas: voar, descobrir novos jardins, polinizar flores e rosas, colher néctar, trazer água e ainda defender a colméia em caso de ataques das vespas e de outros animais. Era muita coisa para se fazer e todas as novas abelhas-operárias estavam com bastante dificuldade de decidir o que era prioritário e o que deveriam fazer primeiro, e o que era mais importante.

A Abelha-Roberta, ansiosa, estava na primeira fila para o primeiro vôo daquela manhã maravilhosa!

Quatro zangões vigiam a entrada da colméia, quando o primeiro grupo de abelhas-operárias se lançou para tão importante empreitada. A Abelha-Roberta voava velozmente com seus cinco olhos, e seu senso de direção e bussola estavam mais afiados do que nunca. Um primeiro grupo de abelhas logo identificou um pequeno jardim de rosas vermelhas, e voaram rapidamente de volta para a colméia para avisar as outras abelhas. As abelhas são seres inteligentes, elas conseguem identificar  seu alvo através da posição do sol e do tempo de vôo entre a colméia e seu alvo. Quando chegam à colméia elas comunicam com precisão matemática a posição que as outras abelhas devem voar para localizar o alvo e  trazer mais insumos para a colméia através de uma dança: a dança das abelhas, (e veja aqui também):

 

A Abelha-Roberta queria achar um jardim muito maior e mais distante para a colméia. Ela queria ser a melhor operária e quando chegasse à colméia queria demonstrar que conhecia muito bem tudo aquilo que fora ensinada:  como voar, achar e fazer a dança de forma impecável, tudo era prioritário e deveria ser executado com perfeição.

Numa direção de 30 graus em relação à inclinação do sol, a Abelha-Roberta encontrou um enorme jardim de orquídeas vermelhas, lindas e cheias de néctar. O jardim estava a 120 metros de distância. Voou então de volta para a colméia. Os Zangões abriram passagem e perceberam que a Abelha-Roberta estava lotada de néctar em suas patas e sem sua bolsa corbícula:

– UAU A Roberta arrasou! Disseram os zangões.

A Abelha-Roberta nem ligou, porque estava louca mesmo era para fazer a sua primeira dança!

E assim o fez, abriu um espaço entre as operárias por cima dos casulos hexagonais, onde ficava a pista de dança. Através de sua bússola interna apontou sua cabeça em 30 graus em direção ao sol manteve as duas asas retas para trás e fez a Dança das Abelhas retornando em 12 segundos (1 segundo = 10 metros) em uma dupla hélice perfeita!!

 

– UAU!! A Roberta dança muito bem! Disseram as abelhas-operárias mais velhas.

A Abelha-Roberta estava muito feliz, e ansiosa, pois queria fazer muito mais!

Uma abelha visita dez flores por minuto, faz em média quarenta vôos diários. Tocando em 40 mil flores (ver link). No final daquele dia a Abelha-Roberta já havia feito muito mais do que isso, havia localizado e trazido para a colméia pólen, néctar e água. Havia encontrado vários jardins em diferentes lugares de onde todo o grupo de operárias pôde trazer muito para a colméia. Mas uma angústia de que podia fazer mais a perturbava: era preciso trazer tanto em pouco tempo, como saber o que era prioritário? Foi quando saiu da colméia num vôo determinado:

– Eu vou localizar todos os jardins de uma única vez!

A Abelha-Roberta estava cansada, meio-tonta, até porque já havia ingerido muito pólen com néctar, e as abelhas ficam meio louconas quando ingerem quantidades excessivas destas substâncias….

A Abelha-Roberta voou, voou e, angustiada,  não conseguia encontrar todos os jardins de uma vez, ela só conseguia fazer uma coisa de cada vez: 1 jardim, 1 dança; 1 jardim, 1 dança, 1 jardim outra dança… “sempre assim?  Por que?” – ela dizia.

Foi quando uma brisa forte a pegou de frente. Meio atrapalhada, angustiada e até um pouco doidona mesmo,  foi jogada para muito alto no céu. Pela primeira vez, suas antenas, suas bussolas, seus cinco olhos, sua probóscide e sua glossa (ver link)  não buscavam o fazer, o cumprir, o executar – mas por um momento, a Abelha-Roberta simplesmente olhava placidamente para o céu, e ele era vasto, calmo e tranqüilo.

A brisa passou,  e Roberta começou aos poucos a cair. Caiu por alguns vinte e três segundos e então de um susto, como que voltando a si, estabilizou-se. Voava ainda muito alto, mas agora estava sóbria novamente. Olhava agora todo o campo,  onde estava situada a colméia, de uma altura em que jamais estivera. Observou de cima os desenhos dos jardins,  e de como os jardins de rosas vermelhas se entrelaçavam aos jardins de orquídeas e que, por sua vez, entrelaçavam-se aos jardins de violetas e como formavam assim desenhos geométricos lindos e que poderiam ser dançados de uma forma diferente!

Quando regressou, na pista de dança da colméia, a Abelha-Roberta dançava uma dança jamais vista. Ela se orientava a 50 graus do sol, levantava a asa direita e voltava em 10 segundos para um ponto que não era o do inicio da dança, como de costume. Deste ponto intermediário, abaixava a mesma asa direita e voltava em 5 segundos num ângulo de 30 graus, rebolando muito. Depois levantava a asa esquerda e dançava a 40 graus em 8 segundos rebolando menos e, completava sua dança, abaixando a mesma asa esquerda em 10 graus e mais 5 segundos sem rebolar tanto.

– “Ela enlouqueceu?” Perguntou um zangão.

– “Sei lá, que dança louca mano!”  Respondeu um outro.

– “Muito pólen, muito pólen” Resmungavam as abelhas operárias mais velhas, enquanto as matizes, assustadas, se encolhiam ainda mais.

No meio do burburinho, algo inusitado nesses 40 mil anos de existência das abelhas aconteceu. A Abelha-Rainha abandonara o ninho e estava agora na pista de dança! Veio alertada pelas operário-anciãs de que uma abelha novata, a Abelha-Roberta,  estava dançando um dança que ninguém entendia.

A Abelha-Rainha mal acreditou no que via:

– “Prestem atenção! O grande momento por mim esperado acaba de chegar! Agora em diante poderemos localizar mais jardins com mais polens e mais néctar de uma vez só! Prestem atenção porque o que todas vocês estão vendo é uma nova dança, é a dança logarítmica da Abelha-Roberta!

– “Dança logarítmica? Como assim?” Cochichava toda a colméia

– “Como vamos decifrar isto?” Resmungavam as mais invejosas.

E a Abelha-Rainha continuou:

– O primeiro movimento indica um jardim de cerejeiras a 50 graus e 100 metros de distancia. Que voe o primeiro grupo! – e um pequeno exército de abelhas voou na direção ordenada.

E a abelha-Rainha continuou

– O segundo movimento indica um jardim repleto de orquídeas a 30 graus e 50 metros de distancia. O terceiro movimento indica a 40 graus a esquerda, distancia de 80 metros um lindo jardim de violetas e o quarto movimento significa a 10 graus a esquerda numa distancia de 50 metros um pequeno jardim de marias-sem-vergonhas. Partam todos os grupos!

Nunca se colheu tanto na colméia da Abelha-Roberta. A nova dança logarítmica da Abelha-Roberta ampliou todos os limites que se lhe havia. Ela e todas as abelhas conseguiam executar mais e melhor no seu devido tempo e prioridade.

Nas outras primaveras que vieram, nas outras colméias que nasceram por muitos anos ainda, a dança logarítmica da Abelha-Roberta fora sempre usada e comemorada. Nos dias de glória da Abelha-Roberta ela respirava tranqüila por saber que suas prioridades e angústias eram na verdade uma benção, um grande incentivo à sua criação,  e que através delas havia crescido e se ampliado.  A Abelha-Roberta ensinou sua dança a várias gerações de novas abelhinhas-operárias, e  as abelhinhas eufóricas no final de cada aula sempre gritavam:

– “Viva a Dança Logarítmica da Abelha-Roberta!”.

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A Âncora e o Fundo do Mar.

Queixa:

Evandro sente necessidade de reconhecer o seu trabalho, de ter o seu trabalho reconhecido.

Evandro gostaria de sentir-se pleno na execução do seu trabalho.

Evandro-âncora

Evandro era uma âncora de um enorme cargueiro petrolífero. Quando o navio desancorava, Evandro-âncora era recolhido pelas enormes correntes de ferro e passava toda a viagem recolhido ao casco do cargueiro.

Evandro-âncora observava de seu posto o fundo do mar: as baleias, os golfinhos, os tubarões. Observava também os corais e toda a fauna e flora marítimas. Observava que todos os animais passavam por ele com certo ar de serenidade, de plenitude, de tranqüilidade. Eram plenos no que faziam: os golfinhos se sentiam recompensados por estarem sempre nadando em grupos, as baleias se sentiam em harmonia plena, cantando seus cantos e amamentando seus filhotes; os tubarões, por sua vez, sentiam-se plenos em atacar lobos-do-mar e caçar pingüins; os corais se completavam entre si, fazendo viver e reviver fauna e flora marinhas entrelaçadas, sabendo-se assim todas as criaturas, competentes e reconhecidas. Todos executavam suas habilidades e pareciam ser valorizados por isso.

Foi então que Evandro-âncora percebeu que não fazia nada de pleno! Nada de importante! Só era usado mesmo quando o navio chegava ao porto. Era então arremessado ao fundo do mar, ao que se agarrava até parar e, parando assim, parava o navio – só isso. Evandro-âncora pensava: será que eles sabem que estou fazendo isto aqui embaixo? Alguém lá em cima sabe que sou feito de ferro especial fundido e que posso suportar grandes pressões? Alguém lá em cima sabe que para chegar aqui passei por fornos metalúrgicos gigantes, fui moldado com ligas metálicas de alta resistência e que, por isso posso segurar um petroleiro? Provavelmente não!

Evandro-âncora sentiu-se então, só. Apesar de cumprir bem o seu trabalho; ele estava no casco do navio, embaixo, e por isso, ninguém reconhecia seu trabalho. E se ninguém reconhecia seu trabalho, talvez fosse mesmo um trabalho não reconhecido, um trabalho sem valor.

Naquela manhã, Evandro-âncora fora içado tristemente. Enquanto a viagem prosseguia, pouco olhava para o fundo do mar, para os corais ou golfinhos. Não faria nenhuma diferença mesmo.

Longas horas se passaram e Evandro-âncora se embalava na sua tristeza recém-conquistada. Foi quando percebeu que um pequeno fio negro aparecera no fundo do cargueiro. Um fio, que aos poucos, fora engrossando e que, em poucos minutos, transformara-se numa grande mancha… de óleo! Certamente algo se rompera no casco do navio, provocando um vazamento gigante, – uma catástrofe estava para acontecer. Evandro –âncora começou a gritar:

– Parem o navio, alguém aí em cima, pare o navio!.

Tomou-se de susto: de repente fora arremessado ao fundo do mar seguido pela grande corrente de ferro que o prendia ao casco. Haviam soltado-o para parar o navio. Concordou que só com o navio parado, poderiam recolher a grande mancha de óleo. O que mais assustava Evandro-âncora era pensar que estavam em alto mar, e ele nunca havia sido usado nestas circunstâncias. Estava acostumado a ser usado somente perto dos portos onde o mar era mais raso e mais calmo. O que aconteceria quando atingisse o solo nestas profundidades? E com todo o óleo sua volta, procurava:

– Onde está o fundo do mar?

Enquanto era arremessado velozmente para o fundo, Evandro –âncora percebera que os peixes estavam todos desesperados tentando escapar do óleo. Golfinhos, baleias e tubarões nadavam desesperados para se salvar. Toda a fauna e flora, uma vez tranqüilas, estavam agora, em fuga, desesperadas. Foi aí que algo inesperado aconteceu, Evandro-âncora foi tomado por seu senso de responsabilidade, sabia que tudo dependia dele. Consultou-se, disse a si mesmo que era feito de um material muito especial, que em sua formação aprendera suportar situações muito adversas e que por isso, estava pronto. Ao pensar assim, Evandro-âncora se sentiu surpreendentemente calmo. E calmo alcançou o fundo do mar em velocidade jamais usada. Chocou-se violentamente com o solo, o impacto o arremessara de volta para cima, chocou-se mais uma, duas, várias vezes. Sempre que era chicoteado para cima, voltava para se agarrar com seus ganchos de ferro fundido especial ao fundo do mar. E quanto mais difícil parecia, mais Evandro-âncora se firmava e com mais força penetrava no solo com determinação. Foi quando chocou-se violentamente contra uma rocha maciça, e nela com todas as suas garras, ancorou-se definitivamente. O cargueiro então parou.

Foi assim que a mancha de óleo pôde então ser retirada pelas enormes redes da companhia petrolífera, e o mar estava, dentro das melhores possibilidades, mais uma vez limpo.

Todos os outros dias da vida de Evandro-âncora ele passou dentro de uma serenidade plena. Sabia que havia na sua formação, tudo o que ele precisava para desempenhar seu papel. Ele desfilava agora, junto ao casco, triunfante – e os peixes, os golfinhos, as baleias e os tubarões pareciam notar que Evandro-âncora agora não tinha mais dúvidas e, sereno com eles, pelo fundo do mar, navegava.

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A Malabarista e o Trapézio.

Queixa:

Nádia está em dúvida se faz uma mudança em sua vida. Gosta do que faz atualmente, mas acha que é um ciclo que já se cumpriu. Gostaria de se sentir desafiada novamente, mas tem dúvidas sobre fazê-lo e teme com a forma que esta mudança poderia afetar sua vida atual.

Nádia gostaria de novos desafios, e de saber que poderia enfrentá-los para se sentir realizada novamente.

Nádia Malabarista

Começara mais um dia de rotina  para Nádia Malabarista no Circo Endeavour. Ela acordara de manhã, havia preparado seu café e já fora adiantando o preparo do seu almoço logo cedo. Fizera tudo como todos os dias de forma a deixar mais tempo à tarde para o treino diário do seu número de malabarista.

Seu número misturava malabarismo e equilíbrio. Ela ficava sobre um rolo de madeira equilibrando-se enquanto fazia malabares com argolas, facas e pratos. Era um número bastante desafiador, mas para Nádia Malabarista havia, com o passar dos anos, se tornado uma rotina. Por anos só exibira o mesmo número. Sua vontade de criar outros números havia sido congelada há muito tempo no passado.

Naquela tarde ao terminar sua rotina de exercícios, Nádia Malabarista, como fazia todas as tardes, passara pela lona central do circo onde os trapezistas, como de costume,  ainda estavam ensaiando. Nádia Malabarista os contemplava maravilhada, tomada pela beleza dos movimentos e piruetas fantásticas, em pleno ar, com suas trocas de mãos e saltos mortais inimagináveis. Ah, Nádia Malabarista queria ser trapezista! Sabia que no trapézio se sentiria desafiada novamente. Pensava que, trabalhando com os outros trapezistas em uma nova atividade, poderia voltar a criar novamente,  outros números,…  para o trapézio!  Poderia então sair da mesmice. Voaria pelo ar desafiador e assim voltaria a ser desafiada.

Nádia Malabarista contemplava ainda o ensaio, quando percebeu que num lapso de tempo o trapezista errara o salto e caíra sobre a rede de proteção, que por sua vez havia cedido com a sua queda. Olhando para o chão, Nádia Malabarista vira o trapezista imóvel e a rede, desmontada.  Foi quando de repente ouviu um grito que vinha de cima. Olhou estupefata para o trapézio onde o segundo trapezista, desequilibrado, também ameaçava cair para o chão, agora sem a rede.

Foi aí que todos os músculos de Nádia Malabarista explodiram em um reflexo amplamente  coordenado; ela correu para as altas hastes de metal onde uma das cordas de sustentação havia se soltado. Agarrara a corda passando-a para baixo do seu corpo, pelas suas coxas, porém este movimento havia levantado a rede apenas timidamente. Percebeu então que a outra corda, da outra haste, também havia se soltado. Nádia, por ser Nádia Malabarista, equilibrou-se sobre os tambores de suporte como só uma malabarista poderia fazer  e, enquanto se enrolava ainda mais na primeira corda puxando o máximo possível a rede para cima, conseguiu – com tudo aquilo  que os anos de rotina a haviam treinado; a se aproximar da segunda corda, e equilibrada a alcançou.

Nádia tinha agora  as duas cordas enroladas no seu corpo que seguiam esticadas até as hastes do trapézio  de forma que seus braços, alongados, as seguravam com toda a força. Como a rede ainda não havia se estendido o suficiente, Nádia então começou a correr para trás, de costas, sobre os tamboretes, mais uma vez equilibrando-se – como só uma malabarista-equilibrista poderia fazer; e assim corria e puxava as cordas, levando a rede cada vez mais para cima.

Um grito. Um silêncio. A queda.

Nádia Malabarista percebe que o segundo trapezista desprendera-se. Ela então se posta firme sobre suas duas pernas, o quadril e o tronco encaixados e os braços retesados. Todo o seu corpo, em perfeito equilíbrio, esticava as cordas aguardando o impacto na rede que se encontrava agora a alguns metros do chão.

O trapezista cai sobre as redes, a tensão da queda é distribuída sobre as cordas. Enquanto o trapezista caia sobre a rede ela cedia com o peso dele e Nádia era puxada para frente e depois para o alto em direção ao trapézio, até às hastes,  pelas cordas, no seu corpo enroladas. O trapezista se salva com a queda amortecida, Nádia Malabarista está no alto do trapézio descendo equilibradamente pelas cordas amortecedoras.

Pelos dias, meses e anos que se seguiram Nádia se sentia realizada por se saber malabarista. Havia descoberto que todas as potencialidades do seu corpo –  desenvolvidas por aquela rotina antes enfadonha; estariam sempre ao seu alcance quando necessárias – e agora, sem as dúvidas e os medos de antes, Nádia vivia amplamente por  conhecer-se potente. Havia então criado outros números de malabares, inclusive um para o trapézio com seus admirados – e agora também, admiradores trapezistas, que fizera muito sucesso na história do Circo Endeavour.

Nádia se sentia assim sempre realizada, por haver descoberto que o nosso grande desafio é sempre nos sabermos prontos.